20 Fevereiro 2023
"O que temos dificuldade para entender é que ou fazemos isso [estudos sobre os abusos sexuais na Igreja Católica] agora ou seremos atropelados por nossa inércia", escreve Marcelo Neri, teólogo e padre italiano, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 15-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Enquanto na Itália ainda se aguarda o prometido estudo dos casos de abuso sexual de menores que chegaram ao Dicastério para a Doutrina da Fé nos últimos vinte anos, a Comissão independente encarregada pela Igreja portuguesa apresentou o seu relatório. Como destacou Lorenzo Prezzi no Settimana News, foi feita uma escolha diferente em comparação com a Comissão CIASE francesa. Diferente sim, mas não sem ter aprendido algo importante com esta última.
A decisão portuguesa de partir das vítimas e das suas narrativas, para disso passar para os arquivos diocesanos e outros documentos e testemunhos, é de fato fruto do que a Comissão francesa apurou ao longo da realização do seu Relatório.
É esta vontade de aprender, de valorizar os caminhos das outras Igrejas, que parece faltar na atitude até agora mantida pela CEI e por muitos bispos italianos. A tentativa parece ser a de reduzir ao máximo a "quantidade" de vítimas, mantendo-a sob controle institucional, para sair incólume perante a opinião pública e inerte perante a comunidade eclesial italiana.
Mesmo olhando apenas para a Europa, já temos agora a disposição uma série de estudos e Relatórios confiadas pelas Igrejas a Comissões realmente independentes, o que é efetivamente considerável. São um patrimônio do qual muito se pode aprender, para descobrir e compreender as múltiplas dobras de uma cultura abusiva generalizada que continua a se esgueirar na Igreja Católica e nas suas estruturas.
Quantos desses relatórios foram tomados em consideração e quantos efetivamente foram lidos e estudados pelos bispos em seu processo de tomada de decisão e gestão da questão dos abusos na Igreja italiana? Porque, se podem ser levantadas dúvidas sobre a seção da projeção estatística dos dados contidos no relatório CIASE, que em todo o caso ocorreu com critérios científicos, parece realmente difícil descartar como prejudicial e irrelevante aquela que recolhe as narrativas das vítimas - só para dar um exemplo.
Mesmo apenas lendo trechos desse precioso material de que dispomos, percebe-se que não se trata apenas dos “casos” de abuso; mas que cada um deles é cercado por uma constelação de questões diante das quais não se pode simplesmente decidir não fazer nada. A patologia e o crime que se tornam evidente no "caso" remetem para um pano de fundo, ainda desfocado e pouco tematizado, que envolve o desvio, a violência, a sua justificação, por um lado, e a sua não responsabilização institucional, pelo outro.
Esse pano de fundo nebuloso deveria ser do máximo interesse para a Igreja como instituição e para a teologia dentro dela. O poder inerente ao ministério ordenado, ocultado pela violência contra o Evangelho por trás da proteção do serviço, e o poder que, em igual proporção, também permeia o carisma que, na situação pastoral de hoje, chegam a uma conjunção potencialmente explosiva e incontrolável.
1. A arriscada clericalização de todo ministério interno às práticas pastorais da Igreja degrada a comunidade de fé e do discipulado ao papel de coadjuvante, sentindo-a como agrupamento parasitário daqueles que não “querem fazer”.
2. Uma visão distorcida dos sacramentos e da sua celebração, que faz das vítimas cúmplices de um pecado que só tocaria Deus - sem necessidade de reparação que leve a olhar na cara a ferida indelével do corpo e da alma violados.
3. Uma cultura carente da memória da vivência de uma Igreja local, com arquivos inacessíveis ou que perdem documentações escabrosas e inconvenientes para aquela Igreja. No entanto, conhecer a história que percorremos é um percurso de aprendizado necessário para poder entrar no tempo inédito que temos pela frente.
4. A falta de uma verificação comunitária, e não só verticalista (na prática, aliás, inexistente), das práxis ministeriais e pastorais de uma Igreja local, juntamente com uma falta de discernimento compartilhado sobre papéis, pessoas, práticas que estruturam uma comunidade cristã.
5. Uma séria aceitação da responsabilidade do tanto que podem oferecer os relatórios e os estudos sobre os abusos sexuais na Igreja Católica permitiria não só gerir os "casos" de forma mais adequada, segundo a justiça, mas também permitiria intervir naquela reconfiguração básica da autocompreensão de ser Igreja almejada pelo processo sinodal em curso.
O que temos dificuldade para entender é que ou fazemos isso agora ou seremos atropelados por nossa inércia.
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O que há por trás dos abusos na Igreja? Artigo de Marcelo Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU